Luiz Paulo Faccioli

O vôo de Faraco

Luiz Paulo Faccioli


Sergio Faraco detesta voar. Fez um esforço hercúleo para ir ao Rio de Janeiro receber o Prêmio Nacional de Ficção, concedido pela Academia Brasileira de Letras à antologia Dançar tango em Porto Alegre: melhor obra de ficção publicada no Brasil em 1998. Instalado no Hotel Glória, arejou os dissabores da viagem na mesa de sinuca. Nos momentos que antecediam a solenidade da premiação, foi apresentado a um acadêmico de currículo singular. O imortal elogiou a coletânea, mas reclamou da falta que lhe fizera um dicionário de termos sul-rio-grandenses para ajudá-lo a vencer a primeira parte do livro, justamente a que reúne os contos de caráter pampiano e carregados de expressões regionais. "Mas para ler a segunda e a terceira parte, o Aurelião lhe basta" foi o que ouviu como resposta, no sotaque forte de um alegretense de boa cepa e indignado com o fato de nunca ter ouvido alguém alegar que precisava de um dicionário paraibano, baiano ou mineiro para ler José Lins do Rego, Jorge Amado ou Guimarães Rosa. Ruborizaram-se ambos, e o que poderia vir a se tornar um profícuo relacionamento esfriou ali, de forma irreversível: o ex-ministro da Cultura Celso Furtado deu as costas ao premiado.

Esta e outras aventuras Faraco gosta de contar aos amigos, entre uma baforada e outra de L&M, num lugar cativo da Feira do Livro de Porto Alegre, de pé, junto ao pavilhão dos autógrafos. Os mais caros são sempre recebidos com um beijo - e beijo de macho talhado na mais fina ortodoxia gaudéria tem um significado sublime, que só os homenageados talvez saibam descrever.

Com o mesmo afeto que devota às amizades, Faraco trata o que produz. A frase é polida à exaustão, e o leitor o percebe ao não encontrar um excesso, uma aresta, sequer uma vírgula fora de lugar. Já se tornou lendária a gênese do conto Um dia de glória, cujo final demandou nada menos que vinte e cinco anos para se concretizar e para que Faraco o considerasse adequado. E refere-se aqui a três magras páginas, necessitadas apenas de um desfecho à altura da construção primorosa da história. Enquanto a solução não chegava, Faraco mantinha-se fiel em seu respeito à literatura (e a si mesmo) e não se apressava. Artista que é, sabe reconhecer o tempo exato e necessário à maturação de uma obra. Outra característica do escritor é continuar trabalhando o que já foi publicado, e seus pouco mais de 50 contos costumam ter diferentes versões em livro.

Inegavelmente o melhor está nos contos, e é neles que se concentra a maior parte da produção literária de Faraco - também cronista, ensaísta, tradutor, com passagens esporádicas pela narrativa longa não-ficcional. A um exímio contador de histórias, o gênero cai como luva. É com essa expectativa, à qual se agrega a curiosidade natural de ver como o autor se sairá numa experiência nova, até certo ponto inusitada, que se abre Lágrimas na chuva - uma aventura na URSS (L&PM, 2002), relato autobiográfico de uma passagem desastrosa pela antiga União Soviética dos anos 60, a convite do Partido Comunista Brasileiro.

A memorialística é uma opção arriscada. Narrar a experiência pessoal quase nunca faz jus ao talento de um bom ficcionista, tanto mais quanto ele estiver envolvido emocionalmente com a trama. O fazer literário pressupõe um distanciamento crítico do universo narrado, via de regra incompatível com a narração da própria vida. Em outras palavras, um sentimentalismo inerente à condição humana e com quem a literatura se digladia encontra na autobiografia um terreno fértil para contaminar qualquer bom discurso. Exemplo que parece subverter a regra é o Quase Memória de Carlos Heitor Cony. Nesse quase romance - assim definido pelo autor -, a estratégia para driblar a armadilha é de uma simplicidade tocante: a ficção corrige o que a realidade tenta corromper.

Faraco alça vôo mais perigoso, pois na aventura russa o equilíbrio está baseado num distanciamento temporal: entre o vivido e sua publicação vão-se quase quarenta anos. Ele admite que chegou a fazer algumas tentativas anteriores, uma delas logo após o retorno ao Brasil, em 1965, que "não prosperou, talvez porque minhas emoções estivessem muito cruas e desordenadas". Bingo! Autor de vasta erudição, Sergio Faraco já demonstrava na época ter cacife bastante para reconhecer o poder do inimigo. Agora, depois de tantos anos e de ter encontrado a cor certa na ficção, decidiu finalmente fazer a aposta.

Lágrimas na chuva - título colhido no filme Blade Runner de Ridley Scott - foi inicialmente publicado sob forma de capítulos semanais no jornal A Notícia de São Luiz Gonzaga, interior do Rio Grande do Sul. A decisão de trazê-lo para livro demandou uma revisão minuciosa que, orientada pelo perfeccionismo do autor, equivaleu a uma reescritura. O relato segue o ordenamento cronológico. Começa em Blumenau, Santa Catarina, nos dias que antecedem a viagem, e termina com a volta ao Brasil, em plena ditadura militar. Cada capítulo é tratado à maneira de um conto individual, concorrência de dois fatores: a origem folhetinesca e a própria vocação de contista do narrador. O resultado dá o tom e o ritmo. Se difícil é abandonar a leitura depois de começá-la, fácil é imaginar o quão penoso para os primeiros leitores era esperar uma semana inteira pela continuação da história.

A estrutura também reflete um conceito singelo e muito pessoal de Faraco. Ele costuma comparar a tensão do discurso a uma corda que se estica: se no conto é desejado que ela se mantenha tensionada todo o tempo e assim exigindo ao máximo a participação do leitor, na prosa longa convém afrouxá-la em determinados momentos para que ele tenha tempo de respirar. Combinando com o ritmo ágil de Lágrimas..., o respiro aqui é concedido em doses homeopáticas e não menos encantadoras. As descrições inspiradas do Kremlin e do recital de Marlene Dietrich em Moscou são exemplos de que o grande contista tem competência de sobra para enfrentar as peculiaridades da novela e do romance, se um dia assim o desejar.

Destaque também é a construção das cenas, e o leitor atento reconhecerá pelo menos uma, por tê-la visto anteriormente, sob outra roupagem, em conto: num dos mais belos momentos do livro, o escritor (que na época, aos 23 anos, ainda não se havia confirmado como tal) socorre a menina armênia pronta a ser despejada de um velho ônibus, em plena estrada, pagando por ela a passagem que o motorista reclamava, para mais tarde receber a gratidão de um beijo encabulado. O trecho é ungido da mesma delicadeza dos textos que Faraco dedica à infância, e termina, como sói acontecer no bom conto, com o petardo certeiro em direção ao estômago do leitor.

Na mesma cena o narrador, hoje maduro, também acerta aquele aspirante a escritor e protagonista, ao refletir sobre a própria mesquinhez de ter esperado, aparentemente em vão, pelo agradecimento da criança. É o efeito óbvio da recriação da realidade para que Faraco possa narrá-la com um mínimo de visão crítica. Como diz a Profª. Léa Masina num brilhante ensaio sobre Lágrimas, "o esquecimento, prolongado por anos, atuou sobre a experiência vivida, transformando-a em outra coisa: num simulacro da vida que, no entanto, possibilita o encontro fruitivo com a emoção original. Nesse ato, o leitor absorve o sentimento que obrigou o escritor a macerar suas lembranças e transformá-las em texto literário".

Contudo, nem toda a perícia nem todo o zelo de Faraco garantiria o êxito se inexistisse uma trama consistente, convincente e que valesse a pena ser contada. Escrever com o objetivo de exorcizar os próprios fantasmas ou resolver dramas íntimos quase sempre resulta em suplício para o leitor incauto, desejoso, em última análise, de reconhecer seu escritor favorito em qualquer obra por ele assinada. Faraco novamente veste-se de audácia - porque é dos poucos que pode dar-se ao luxo de fazê-lo - ao narrar "a história que, durante anos, tive de sufocar como a um grito". Mas a extraordinária descida do jovem simpatizante do comunismo aos porões, recém agora fechados, de um modelo que cativou bons quadros da intelectualidade brasileira não encontra paralelo em nossa literatura. E a aterrissagem de volta, em pleno e desconhecido regime de exceção, consegue a proeza de, mesmo sem ter sido contada, pôr no relato um tempero exclusivo e que merecerá, com toda a certeza, uma continuidade em livro.

A despeito de suas virtudes, o autor ainda arranja motivos pelos quais se penitenciar, e nessa penitência acaba demonstrando a maior das virtudes para o ofício que tanto preza: "aquilo que vi, num quintalejo de angústias terrestres, há de se perder no tempo pelos meus defeitos de escritor e não por ter deixado de narrá-lo". A modéstia talvez o impeça de ver, mas Lágrimas na chuva poderão se tornar as de outrem, não as nascidas num vôo de Sergio Faraco.


ENTREVISTA

Rascunho - Em 1995, em entrevista ao jornal Zero Hora de Porto Alegre, declaraste que não mais escreverias. Como e por que retomaste, com tanto vigor, o ofício da escrita, depois de uma declaração desse porte?

Sergio Faraco - Naquela entrevista, quando eu falava em não escrever mais, referia-me à ficção. Meu último conto fora escrito cinco anos antes, em 90, e eu já não conseguia criar boas histórias. Tinha feito inúmeras tentativas, sempre fracassadas. Nos últimos anos noventa escrevi três contos que, ao menos, eram legíveis. Juntando-os com relatos antigos, inéditos, que eu descartara na organização de livros anteriores, publiquei Rondas de escárnio e loucura. De lá para cá, escrevi apenas um conto, muito ruim e, por isso, impublicável. E então eu te pergunto: onde está essa vigorosa retomada de que me falas? Não existe vigor algum e tampouco uma retomada. Lágrimas na chuva não serve como referência, é o relato de uma estação da minha vida, uma história pronta. Continuo na mesma situação em que me encontrava em 95, isto é, buscando o ouro e encontrando só cascalho e barro. Com uma pequena diferença: agora que reconstituí esse episódio de meu passado - um cravo atravessado em minha garganta -, pode ser que, futuramente, eu retorne ao conto e prove a mim mesmo que não sou um ficcionista decadente.

R - Tens fama de perfeccionista, coisa que teus textos comprovam fartamente. Quantas vezes costumas reescrever cada trabalho? Teu nível de exigência é igual para o conto e para a crônica?

SF - Minha exigência é igual para conto, ensaio, crônica, carta, entrevista, e-mail e até cartão de Natal. Isso faz parte do respeito que sinto pelo nosso idioma e responde ao meu anseio de me expressar da melhor maneira possível, no limite de minha circunstância. Na literatura, contudo, o trabalho é mais demorado. Jamais me satisfaço com as primeiras versões. Tento encontrar a forma adequada para que aquilo se transfira ao Outro, isto é, tento escrever de tal modo que o Outro veja o que estou vendo e sinta o que estou sentindo. É a diferença entre matéria e forma, ou, como costumava dizer Quintana, entre o espontâneo e o natural. É preciso que o texto mude de degrau: da expressão sentimental para a expressão literária, que nada mais é do que a ponte para chegar ao leitor. Alguns escritores o conseguem com facilidade, outros precisam mourejar, como é meu caso. Em Lágrimas na chuva reescrevi vinte, trinta vezes cada capítulo, e na revisão final mexi de novo. Hemingway reescreveu quarenta vezes o final de um de seus romances, quem sou eu para me contentar com menos?

R - Como te sentes ao finalizar as memórias sobre a Rússia, depois de guardá-las por 37 anos?

SF - Aquilo que está mais presente, por enquanto, é o cansaço. Trabalhei demais no último ano. Traduzi dois livros de Horacio Quiroga, os contos de A galinha degolada e os pequenos ensaios de Heroísmos: biografias exemplares, organizei coletâneas de poemas de Guerra Junqueiro, Antero de Quental, Cesário Verde, Camilo Pessanha e Castro Alves, além de um volume intitulado Cinco séculos de amor, que compreende sonetos amorosos portugueses e brasileiros desde o século XV até o XX. Ultimamente, traduzi o novo livro de Eduardo Galeano, O teatro do bem e do mal. E no meio disso tudo, essa memória. Falta contar o que me aconteceu aqui, ao retornar, aqueles meses tão insensatos que me levaram a sentir saudade do Kremlovski Bolnitso.

R - Isso é curioso. Não chegas a avançar em Lágrimas na chuva na história da volta ao Brasil e da prisão pela Interpol. Contudo, o simples fato de declarares o que aconteceu sem narrá-lo dá um tempero especial ao livro. Mais que tempero, é o grande desfecho. Como pensas tratar disso daqui por diante: novo livro ou deixarás a lacuna alimentando a imaginação do leitor?

SF - Minha intenção, enquanto escrevia, era contar também o que aconteceu aqui, mas teria de me apressar: o editor pediu que lhe entregasse o livro em setembro. Ora, não sei escrever com pressa e continuei trabalhando como sempre trabalhei. Coincidiu que em setembro, na narrativa, eu estava chegando ao Brasil. Terminei ali e penso que terminei mais ou menos bem, aquela parte não faz falta e, incluída no livro, acabaria se constituindo num anticlímax. E agora ainda não sei o que fazer. Acho que tenho a obrigação moral e a obrigação política de escrever a segunda parte da história, mas a questão é que essas obrigações não bastam para que alguém faça um bom livro.

R - Lágrimas na chuva é uma obra que se debruça sobre memórias penosas, com requintada precisão de detalhes, como se a memória os tivesse preservado ao longo de quase quatro décadas. Até que ponto foi difícil esse trabalho, já que evocava lembranças assim amargas? A memória funcionou depois de tantos anos?

SF - O leitor pensará que tive maior dificuldade ao escrever capítulos mais dolorosos, mas não é assim. Lembrar significava sofrimento - não foram poucas as ocasiões em que me emocionei -, mas não necessariamente complicações para escrever: a história era aquela, estava pronta e era preciso tão-só buscar a melhor forma de contá-la. Os capítulos mais difíceis foram os corriqueiros, que intermediavam situações de alguma carga dramática: era preciso salvar o conteúdo pela forma, algo como tirar vinho da pedra. A preservação dos pormenores também não foi uma proeza. Eu tinha anotações, capítulos iniciados e não terminados, crônicas que escrevi e nunca publiquei, outras que publiquei, e até cartas que enviei de Moscou e meu pai guardou. De resto, a gente não esquece facilmente aquilo que é marcante. O quase intransponível obstáculo era começar a escrever e levar a história até o fim, sem me acabrunhar com as aflições e sem que o texto se convertesse num desabafo, isto é, numa expressão meramente sentimental. Nesse sentido, a publicação em A Notícia não foi apenas importante, foi fundamental. O jornal permitiu que eu pagasse essa dívida em prestações semanais e a longo prazo. De outro modo, jamais a pagaria.

R - Por que escolheste publicar num jornal tão longe de Porto Alegre?

SF - Escolhi A Notícia, de São Luiz Gonzaga, porque é um jornal de circulação restrita à região missioneira, e a publicação da série não esvaziaria o livro que porventura viesse a lançar.

R - Afirmaste em recente entrevista que paraste de escrever contos para narrar tua história em Lágrimas na chuva. Isso significa que vais voltar a escrever contos?

SF - Parar de fazer ficção não foi algo que deliberei, para me dedicar a essa memória. O que virá depois, além da pretendida segunda parte das memórias? É uma boa pergunta. Numa das últimas visitas que fiz a Mario Quintana, ele me mostrou um caderno escolar com seus novos poemas manuscritos. As páginas estavam numeradas e eram cento e tantas. Eu disse a ele: "Puxa, estás desovando mais que peixe". E perguntei como escrevia, se já não saía da cama. Ele estava deitado. Sentou-se, encostou-se à cabeceira e me pediu que lhe alcançasse uma pasta, que pôs sobre as pernas. "Escrevo assim", disse ele, e eu me comovi ao constatar que aquele homem já tão idoso, tão doente, tão magrinho, teimava em escrever e só deixaria de fazê-lo quando estivesse morto. Eu gostaria de ser como o Quintana: escrever sempre. Mas o que vou escrever de agora em diante eu não sei. E por enquanto não devo pensar nisso, preciso descansar.

R - Lágrimas na chuva, além de se constituir numa extraordinária narrativa da descida aos infernos, é também um elogio aos afetos, na amplidão e profundidade que isso implica. Tens vontade de rever os lugares em que viveste, saber onde estão as pessoas citadas nas memórias?

SF - Aquele passado remanesce em minha lembrança, mas não me afeta a vida como algo que estivesse pendurado nela, puxando-a para cá ou para lá: ele é a minha vida, uma substância que ela assimilou. Pessoas com as quais me relacionei intimamente, em Moscou e em outros lugares, continuam comigo para que eu seja o que sou. Ao retornar ao Brasil, experimentei sentimentos novos, que pela intensidade e pela atualidade se antepuseram aos antigos, mas estes permaneceram no lugar que haviam conquistado em mim. Não se sepulta o passado para dar vida ao presente. Seria como arrancar os alicerces de uma casa pronta. Assim tudo vem abaixo. Em Lágrimas na chuva, tive de vestir a pele daquele moço e então me vi na contingência de viver tudo outra vez, com as implicações emocionais que isso representava, mas escrever é assim mesmo. Para ser verdadeiro, o escritor tem de sentir o que sentem seus personagens, sobretudo quando o personagem é ele próprio. Terminado o trabalho, ele custa um pouco a voltar ao normal, mas volta.

R - Os acontecimentos posteriores ao lançamento do livro - marcados por retumbante sucesso entre o público leitor do extremo Sul - materializaram as expectativas que tinhas em relação ao livro?

SF - Eu não tinha grandes expectativas, queria apenas contar minha história e a contei. Não de algum jeito especial que, eventualmente, poderia ambicionar, mas do jeito que pude.

Luiz Paulo Faccioli
Publicado em Rascunho, edição de fevereiro/2003

 

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